GUAÍBA: RIO OU LAGO?

O EMBATE TÉCNICO, POLÍTICO E ECONÔMICO QUE ENVOLVE A CLASSIFICAÇÃO


Foto de Clovis Heberle

ATHOS STERN

Engenheiro, professor aposentado da UFRGS

Consultor da Associação Comunitária de Imbé-Braço Morto


O Guaíba, corpo d’água que banha a cidade de Porto Alegre e diversas outras regiões da Região Metropolitana, é historicamente conhecido como um rio. No entanto, a recente decisão de classificá-lo como lago reacendeu discussões envolvendo interesses ambientais, econômicos e políticos. Mais do que uma mudança de nomenclatura, a nova classificação pode alterar profundamente as regras de proteção ambiental, impactando diretamente a ocupação urbana nas margens do Guaíba.

Critérios técnicos internacionais: Guaíba é um rio

De acordo com definições adotadas por instituições internacionais — como o USGS (Estados Unidos), Ordnance Survey (Reino Unido), Ministère de la Transition Écologique (França), ONU, UNESCO e a Organização Hidrográfica Internacional — rios e lagos são diferenciados por critérios como:

  • Presença ou ausência de fluxo contínuo;
  • Localização em depressões naturais;
  • Função de escoamento;
  • Definição de margens e direção do curso da água.

Aplicando esses critérios ao Guaíba, observa-se que ele possui fluxo contínuo e direção predominante, com função de escoamento das águas dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí até a Laguna dos Patos. O Guaíba, portanto, apresenta características típicas de um rio emissário — um curso d’água que recebe volume de afluentes e o conduz a outro corpo hídrico, no caso, o oceano.

O que muda com a classificação como lago

O ponto mais sensível dessa discussão está nas implicações legais da nova classificação. Conforme o Código Florestal brasileiro, rios com largura superior a 600 metros exigem Áreas de Preservação Permanente (APPs) de até 500 metros. Já para lagos em áreas urbanas, essa faixa pode ser reduzida para apenas 30 metros.

Essa flexibilização abre caminho para a urbanização das margens do Guaíba, antes protegidas por lei. Com menos exigências ambientais, empreendimentos imobiliários de alto padrão se tornam mais viáveis e lucrativos. Um exemplo emblemático é o projeto Golden Lake, que prevê a construção de sete condomínios de luxo à beira do Guaíba, com apoio político e base legal na nova classificação do corpo hídrico.

Interesses econômicos em jogo

A decisão de reclassificar o Guaíba como lago atende diretamente a interesses de:

  • Empresários da construção civil e incorporadoras imobiliárias, que podem explorar áreas antes restritas, valorizando os terrenos e aumentando os lucros;
  • Fundos de investimento e investidores privados, interessados no potencial de retorno das áreas valorizadas;
  • Agentes políticos locais, que veem no aumento da arrecadação e no crescimento urbano uma oportunidade de capital político e desenvolvimento econômico regional.

Os riscos da flexibilização ambiental

Ambientalistas e especialistas em urbanismo alertam que a redução das APPs pode gerar impactos graves a médio e longo prazo:

  • Aumento da poluição da água, por conta da impermeabilização do solo e lançamento de resíduos;
  • Maior risco de alagamentos, especialmente em períodos de chuvas intensas, como os já enfrentados por Porto Alegre;
  • Perda de biodiversidade e degradação de ecossistemas aquáticos e de áreas de várzea;
  • Pressão sobre a infraestrutura urbana e impactos à saúde pública.

Além disso, a classificação como lago enfraquece o aparato legal de fiscalização ambiental, facilitando a especulação imobiliária descontrolada e dificultando a contenção de danos futuros.

Uma escolha que não é neutra

A decisão de alterar a natureza jurídica do Guaíba pode parecer técnica, mas é, na prática, profundamente política. Ela redefine o futuro do espaço urbano de Porto Alegre e região, priorizando interesses econômicos de curto prazo em detrimento de uma agenda de sustentabilidade, equilíbrio ambiental e bem-estar coletivo.

Conclusão

O Guaíba, pelas evidências técnico-científicas amplamente reconhecidas, comporta-se como um rio. Alterar sua classificação para lago pode beneficiar economicamente um pequeno grupo, mas coloca em risco o equilíbrio ambiental da região e a qualidade de vida de milhões de pessoas.

A pergunta que fica é: o que vale mais — os ganhos imediatos de uma elite econômica ou a preservação do patrimônio ambiental e coletivo para as próximas gerações?

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

OS PERIGOS DE UM PORTO EM ARROIO DO SAL

LAGOAS DO LITORAL AMEAÇADAS DE CONTAMINAÇÃO

PROJETO DA CORSAN NO LIMITE DA ILEGALIDADE