O GUAÍBA É RIO OU LAGO?

 




A definição do Guaíba como rio ou lago é mais do que uma questão de nomenclatura. Envolve critérios hidrográficos, geomorfológicos, legais e, sobretudo, políticos e econômicos. 

No caso específico do principal corpo hídrico de Porto Alegre, o debate ultrapassa a esfera científica e entra diretamente no campo dos interesses públicos e privados sobre o uso do solo urbano. Afinal, o que muda — na prática e na lei — se o Guaíba for considerado um lago ou um rio?

Uma audiência pública promovida pela juíza Patrícia Laydner, que deverá julgar uma ação de ambientalistas que pedem o reconhecimento do Guaíba como rio, expôs à Justiça a complexidade do tema, reunindo análises técnicas divergentes sobre o tema.  No centro da controvérsia está o impacto jurídico da classificação sobre a extensão da faixa de preservação permanente (APP) ao longo das margens.

Atualmente o Guaíba é oficialmente reconhecido como um lago — interpretação defendida tanto pela Prefeitura de Porto Alegre quanto pelo Governo do Estado. Essa classificação estabelece uma faixa de proteção de 30 metros em áreas urbanas. No entanto, caso uma ação judicial movida por entidades ambientalistas seja acolhida em sua totalidade, o Guaíba passaria a ser considerado um rio. Nesse cenário, as margens poderiam receber até 500 metros de proteção, conforme prevê a legislação federal.

A insistência dos entes públicos na manutenção da atual classificação revela interesses diretos na ocupação e no uso das áreas ribeirinhas, especialmente em zonas de valorização imobiliária e projetos urbanísticos. Já os ambientalistas argumentam que a reclassificação para rio garantiria uma proteção ambiental mais rigorosa e coerente com os riscos ecológicos associados à região.

 ATHOS STERN

Engenheiro, professor aposentado da Ufrgs

Ex-presidente da Associação Comunitária de Imbé - Braço Morto

A classificação do Guaíba como rio ou lago envolve critérios hidrográficos, geomorfológicos, legais e até políticos. A seguir, analisamos os principais pontos técnicos e históricos para esclarecer essa controvérsia.


1. Qual é a definição de “rio” e de “lago”?

 Rio:
É um curso de água com escoamento unidirecional, que nasce em um ponto e deságua em outro (mar, lago, rio). Recebe afluentes e apresenta corrente contínua movida pela gravidade.

 Lago:
É uma massa de água parada ou com fluxo muito lento, com entrada de água (chuva, rios, lençóis freáticos), e pode ou não ter saída (emissário). Apresenta forma mais larga do que comprida e sem direção dominante de corrente.

🔍 Exemplo de lago com emissário: O Lago Tanganica, na África, recebe efluentes e possui escoamento, mas sua baixa declividade e fluxo quase parado o caracterizam como lago.


🌍 2. Essas definições são nacionais ou internacionais?

São definições internacionais, baseadas em hidrografia e limnologia. No Brasil, órgãos como o IBGE e a ANA utilizam esses critérios técnicos, mas a nomenclatura oficial pode variar com o tempo por influência de fatores históricos e legais.


💧 3. Ter afluentes define que é rio ou lago?

Não. Tanto rios quanto lagos podem receber afluentes.

  • Rios: recebem afluentes continuamente ao longo do curso.
  • Lagos: também recebem afluentes, mas podem ter escoamento mínimo ou irregular, dependendo da topografia e morfologia.

🔍 Exemplo: O Lago de Maracaibo (Venezuela) recebe afluentes e tem saída para o mar, mas é considerado um lago por suas características físicas e salobras.


🌊 4. Ter entrada e saída de água para o mar define que é rio?

Não necessariamente.

  • Se há escoamento contínuo e claro da água, com direção definida, é típico de rio.
  • Mas alguns lagos possuem saída natural, sem deixar de ser considerados lagos, especialmente se a área central tiver características lacustres (águas lentas, forma alargada).

🔍 Exemplo: A Lagoa dos Patos, onde o Guaíba deságua, tem comunicação com o mar e recebe vários rios, mas é classificada como lagoa estuarina.


🧭 5. A existência de direção de fluxo contínuo indica que é rio?

Sim. Um dos principais critérios para definir um rio é ter direção dominante de fluxo.

No Guaíba, o fluxo segue de norte para sul, recebendo os rios Jacuí, Gravataí, Sinos e Caí e escoando para a Lagoa dos Patos.

🔍 No entanto, em certos períodos, especialmente com a maré alta ou ventos sul, o fluxo do Guaíba pode ser interrompido ou invertido — o que aproxima seu comportamento ao de um corpo lacustre ou estuarino.


📐 6. A largura do Guaíba o caracteriza como lago?

Não por si só.

  • Rios largos, como o Amazonas e o Paraná, mantêm sua classificação devido ao fluxo contínuo.
  • Porém, a morfologia do Guaíba, especialmente em frente a Porto Alegre (mais largo que comprido e com águas lentas), se aproxima da aparência de um lago ou baía.

🔍 Isso contribui para a percepção popular de que é um lago, especialmente em áreas urbanas com pouco movimento visível de corrente.


🐢 7. A baixa velocidade da água indica que é lago?

É um indicativo, mas não um critério absoluto.

  • Muitos rios apresentam trechos lentos ou com remanso.
  • O Guaíba, por ter declividade muito baixa e grande volume, tem escoamento lento, o que reforça sua ambiguidade morfológica.

🔍 Essa lentidão permite que seja interpretado por alguns especialistas como uma lagoa estuarina — uma categoria mista entre rio, lago e estuário.


🧭 8. E quanto ao fundo e à extremidade norte do Guaíba?

Dois fatores geomorfológicos importantes reforçam o caráter lacustre:

  • Acúmulo de lamas (sedimentos finos) no fundo, típico de ambientes de baixa energia, onde a corrente é insuficiente para removê-los.
  • Presença de um delta na extremidade norte (formado pelo rio Jacuí), que indica que o Guaíba funciona como uma bacia receptora, não apenas como um canal condutor — comportamento típico de lagos ou lagoas costeiras.

✅ CONCLUSÃO

Tecnicamente, o Guaíba apresenta características predominantes de rio:

  • Possui escoamento unidirecional de norte para sul.
  • Recebe afluentes importantes (Jacuí, Gravataí, Caí, Sinos).
  • Tem uma saída definida para a Lagoa dos Patos.
  • Apresenta fluxo dominante, mesmo que sujeito a inversões temporárias.
  • É oficialmente classificado como rio pelos órgãos como IBGE e ANA e pela Lei Estadual nº 12.239/2005.

Contudo, há argumentos consistentes para sua classificação como lago ou lagoa estuarina, considerando:

  • Acúmulo de lamas no fundo, indicativo de baixa energia.
  • Presença de delta na entrada norte.
  • Morfologia ampla e rasa, especialmente em frente a Porto Alegre.
  • Escoamento lento e sujeito a inversões por marés ou ventos.
  • Semelhança com ambientes lacustres estuarinos ao redor do mundo.

🧭 Conclusão Integrada:

➡️ Os sedimentos finos e o delta reforçam a leitura geomorfológica do Guaíba como um sistema de transição, com comportamento misto entre lago e rio.
➡️ No entanto, somando todos os fatores  especialmente os hidrológicos e legais  predominam os elementos fluviais.


✅ Portanto:

Tecnicamente e oficialmente, o Guaíba é um rio.
Mas do ponto de vista geomorfológico, limnológico e hidrodinâmico, ele também possui diversas características típicas de lago ou lagoa estuarina — o que justifica a persistente controvérsia.

 

Comentários

  1. [28/05, 10:18] Athos Stern: Pagamento do boleto
    [02/06, 08:53] Athos Stern: A denominação correta e historicamente mais ampla para o Guaíba é "rio Guaíba", embora essa classificação seja controversa e varie ao longo do tempo e conforme a fonte.

    1. História e uso tradicional

    Desde os tempos coloniais e no século XIX, "rio Guaíba" era a denominação mais comum, inclusive em documentos oficiais, mapas, literatura e na fala popular em todo o estado do Rio Grande do Sul, não apenas entre porto-alegrenses. Exemplos disso incluem:

    Cartografia imperial e registros do século XIX;

    Obras de escritores gaúchos, como Simões Lopes Neto e outros cronistas da época;

    Leis e documentos técnicos do século XX que mencionam o "rio Guaíba".


    2. Mudança de perspectiva

    A partir da segunda metade do século XX, com avanços em hidrografia e limnologia, alguns estudiosos passaram a classificar o Guaíba como um lago ou lagoa estuarina, devido às suas características físicas (como baixa declividade e influência de marés). Isso gerou um debate técnico e político que persiste até hoje.

    3. Na prática

    A maioria dos gaúchos ainda chama de "rio Guaíba", tanto em Porto Alegre quanto em outras regiões.

    Instituições oficiais como a Secretaria do Meio Ambiente do RS (SEMA), o IBGE e universidades costumam adotar o termo “Lago Guaíba” em documentos técnicos recentes.

    No entanto, a Lei Estadual nº 12.239/2005 menciona explicitamente "rio Guaíba", o que fortalece o uso tradicional.


    Conclusão

    Portanto, a denominação tradicional, culturalmente consolidada e amplamente usada no passado e ainda hoje por muitos gaúchos é "rio Guaíba", e essa não era (e não é) exclusividade dos porto-alegrenses. A controvérsia sobre sua classificação científica (rio ou lago) é recente e envolve aspectos técnicos, jurídicos e ambientais.

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